- Década de 80
- RTP Perde taxas e rede de emissão
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Entre as importantes alterações determinadas pela segunda revisão constitucional,1 situou-se a que pôs fim ao monopólio público em matéria televisiva e consequente possibilidade de abertura da exploração ao sector privado. Assim se concluía um longo e acidentado percurso, marcado por debates, por vezes acessos, sobre temática fartamente desenvolvida em estudos, pareceres, propostas e contra-propostas. Tudo acabaria por ficar claro na Lei nº 58/90 (7 de Setembro), que definiu o novo regime do exercício da actividade de Televisão no território nacional. Documento extenso (explanava doutrina por 66 artigos enquadrados em 7 capítulos) definia nos três primeiros parágrafos do seu artigo 3º o que se esperava: “A actividade de Televisão pode ser exercida por operadores públicos e privados, nos termos da Constituição e da presente Lei / O estado assegura a existência e o funcionamento de um serviço público de Televisão, em regime de concessão / O exercício da actividade de Televisão, com excepção do serviço público, carece de licença, a conferir por concurso público.”
Uns 6 meses antes, o Primeiro-Ministro, prof. dr. Cavaco Silva, convocara a Imprensa para se apressar a anunciar a atribuição de 2 canais privados de Televisão de âmbito nacional. Fazia-o, ao que tudo levava a crer, sob pressão do Partido Socialista, que levara à Assembleia da República a sua proposta de lei sobre as novas televisões. O antigo presidente da RTP, João Soares Louro, já achava que assim era, alguns dias antes.2 Entretanto, sabia-se que a TV privada interessava, então, a 6 grupos empresariais, que vinham desenvolvendo intensa actividade em áreas de projecto (e até a nível promocional), parecendo em condições de alinhar na grelha de partida. Eram os seguintes, indicando-se, também, os respectivos “patrões”: SIC (Francisco Pinto Balsemão), Presslivre (Carlos Barbosa), Edipress (Proença de Carvalho), Sonae (Belmiro de Azevedo), PEI (Joe Berardo) e Telecine (Júlio Isidro). Para a Igreja, que não abdicava de reclamar posições de pioneira nesta corrida, o que se previa era a atribuição preferencial de um período de emissão “num dos dois novos canais a licenciar”, em vez de um também já aventado “espaço próprio” na RTP-2. Sabe-se como, mais tarde, esta (e outras) situações se alteraram; porém, na altura, a Igreja mostrou-se francamente insatisfeita e nem outra coisa seria de esperar de quem, para se justificar, invocava promessas anteriormente feitas por governos do PSD liderados por Sá Carneiro, Pinto Balsemão e Cavaco Silva. Ao Expresso3 o coordenador do projecto da TV da Igreja Católica, Magalhães Crespo, referia “que o programa do primeiro governo de Cavaco Silva ´era claríssimo` quanto à atribuição de um canal à Igreja, possibilidade modificada pouco depois com a ideia da concessão de um ´espaço nobre` na RTP-2”.4 Curioso é verificar que Pinto Balsemão, já como líder do projecto SIC, achava esta última solução a melhor, afirmando, no concernente à Igreja e outras confissões religiosas: “Sempre entendi que a Igreja teria direito a algumas horas para divulgação do seu apostolado, mas no serviço público, como aliás estava previsto.” Na verdade, era cenário pouco concebível ver a candidata SIC a partilhar o seu tempo com a Igreja… Já o projecto liderado por Proença de Carvalho não fechava a porta (mas também não a escancarava) a uma eventual repartição de tempos de antena. Entretanto, declarações de Cavaco Silva sublinhavam que poderia vir a ser entregue à Igreja um canal privado, “desde que a Assembleia da República considerasse que essa era a decisão mais justa e mais correcta.” O que o Primeiro-Ministro já considerava como um “erro grave” era que a Assembleia alterasse a proposta governamental de se manterem os 2 canais de serviço público. E explicava porquê, com 3 razões: “Primeiro, porque poria em causa as exigências de programação e a qualidade do serviço público de Televisão; ora, nós queremos melhor e não pior Televisão. Em segundo lugar, porque poria em causa a abolição das taxas de Televisão sem sobrecarregar os contribuintes portugueses; ora, a abertura da Televisão a entidades não estatais deve beneficiar os portugueses, libertando-os do pagamento de 3 500 escudos por ano, a título de taxa. Por último, porque em todos os países da Europa existem pelo menos dois canais de serviço público de Televisão e não há nenhuma razão válida de interesse nacional para que não seja assim em Portugal.”5
Magalhães Crespo terá sido o primeiro a mostrar-se surpreso com tais explicações, confessando continuar a não compreender porque não se ia para a já anteriormente falada partilha da RTP-2, no seu entender a melhor solução para a Igreja e para o País.6 De imediato, a maior partes das vozes igualmente interessadas na próxima TV privada também se pronunciaram favoravelmente a tal partilha, ou não fosse, como era, o caso dela deixar mais terreno livre para os 2 canais a concurso público. O que, entretanto, começava a tomar consistência era a posição de que não sendo viável a utilização da RTP-2, a tempo parcial, pela Igreja (por não se chegar a acordo nem se equilibrarem as vontades), e não sendo pacífica a eventual atribuição de um espaço televisivo num dos novos canais a licenciar, também não pareciam existir razões suficientes para novos privilégios e o projecto da Igreja, até pelo aspecto material que não tinha capacidade de ignorar (e de que a indispensabilidade de recurso ao mercado publicitário era exemplo claro), deveria concorrer em plano de igualdade com qualquer outro que manifestasse interesse em vir a deter direito de antena.
Pinto Balsemão (grupo SIC) não tinha dúvidas: “Acho que a Igreja pode, se quiser, concorrer a um canal privado (…) em igualdade de circunstâncias com todos os outros interessados, através de concurso público, como o impõe o artigo 38 da Constituição, se desejar fazer Televisão comercial.” Moreira da Silva (grupo Sonae) também era de opinião que “a Igreja Católica poderá vir a ter um canal privado de Televisão se o ganhar em concurso público sujeito a regras de concorrência leal entre os candidatos.” Proença de Carvalho (grupo Edipress) concordava com a concessão de um canal à Igreja Católica mas essa era uma ideia que não defendia “por qualquer razão religiosa” mas sim por entender que “dois canais públicos são um exagero”. Acrescentava: “E dado que existem compromissos da actual maioria e do Governo na concessão de um canal à Igreja, esses compromissos deverão ser respeitados pela atribuição de um dos canais que o Estado se reservou.7 ”João Soares Louro, antigo funcionário e presidente da RTP – que a esta já dissera (16.3.1990) que “o interesse da Igreja é uma espécie de caixa de esmolas electrónica” – via todo o problema do lado de fora, mas como profundo conhecedor dos meandros da Televisão, não se dispensava de falar e ser ouvido sobre ela. A intenção da Igreja pretender um canal de Televisão merecia-lhe ainda o seguinte comentário: “É, por si só, uma aberração sem qualquer sentido e sem precedente em todo o mundo Ocidental. O próprio Vaticano não possui nenhuma estação de Televisão.” Quanto à perspectiva do governo licenciar duas estações privadas, ficando assim o mercado publicitário dividido por 4 canais de Televisão, Soares Louro afirmava que, pelas suas contas, mais que 3 canais seria “um suicídio”. E avançava: “Neste momento, a RTP, a Televisão que temos, está a perder cotas no mercado da publicidade. A Radiotelevisão Portuguesa que chegou a ter 53% dos investimentos globais de publicidade, este ano chegou aos 47%. Dir-me-á que são uns escassos pontos percentuais, mas esses ´escassos pontos` correspondem a mais de 2 milhões de contos a menos. (…) A Televisão tem custos muito elevados. Não se consegue manter um canal a funcionar 8 ou 10 horas por dia, com o mínimo de qualidade com menos de 10 milhões de contos por ano, e se o mercado publicitário crescer mais um pouco nos próximos anos vamos ter, no máximo, 25 milhões de contos líquidos para investir em Televisão. Esse ´bolo` terá, então, que ser dividido por 4, o que indica que os canais de Televisão vão ter que suportar enormes prejuízos nos primeiros anos de actividade.”8
Juízos, como este, tinham já em conta a proposta do Governo, que abolia a taxa de Televisão (que, na altura, significava pouco mais que 30% das receitas da RTP) e fixava para a publicidade um máximo de 15% do tempo diário de emissão, sendo que não poderia ocupar mais de 12 minutos por hora. Ao maior partido da oposição, o PS, também convinha a existência de um tecto publicitário máximo – necessário para impedir uma flagrante e desleal concorrência com as estações privadas – mas o que se considerava como certo, principalmente após a perda das receitas das taxas, era que a RTP, por prestar um serviço público, não deveria confrontar-se com guerras de audiências, pelo que ao Estado competiria, através do seu orçamento geral, a fixação de um subsídio indemnizatório. O partido no poder, o PSD, não tomou uma posição imediata sobre este projectado financiamento dos 2 canais públicos, reservando-se para futuros desenvolvimentos do problema, no seu todo.

1 Iniciara-se em 14.10.1987 e concluíra-se em 1.6.1989. Muitas das alterações introduzidas pela Lei Constitucional nº 1/89 mereceram aprovação por unanimidade ou por maioria de mais de quatro quintos. No que respeitou à Televisão, chegou-se a consenso após algumas acesas controvérsias que, aliás, vinham de longe, como lembra Mário Mesquita Ver mais(“Os Meios de Comunicação Social” em Portugal – 20 Anos de Democracia, coordenação de António Reis, edição Círculo de Leitores – 1993), que vinham, com efeito, do tempo da Constituinte, quando Adelino Amaro da Costa (CDS) se mostrara insatisfeito com o estabelecido pela Constituição de 76 (“a Televisão não pode ser objecto de propriedade privada”), já que “havia quem defendesse que a Constituição ´somente veda a propriedade privada da Televisão, não a sua gestão por entidades privadas` (Direitos Fundamentais, Jorge Miranda), enquanto outra corrente sustentava que o diploma constitucional não permitia qualquer espécie de concessão de exploração de canais televisivos (Constituição da República Portuguesa, Anotada, Gomes Canotilho e Vital Moreira).” Voltar a fechar
2 “A recente iniciativa parlamentar do PS, que se saúda, obriga o Governo e o PSD a correrem: a apressar a execução daquela que foi uma das suas promessas eleitorais. Promessa táctica e já irremediavelmente adiada, no seu cumprimento possível, para os fins de 1991 ou mesmo para 1992. De Ver maisoutra forma não se entenderia a morosidade na divulgação do Plano Técnico de Cobertura Televisiva Nacional; na instituição e funcionamento da Alta Autoridade para a Comunicação Social (ainda em operoso parto legislativo), para não falar na clamorosa ausência de uma lei-quadro para o audiovisual em Portugal. Era por aqui, obviamente, que se deveria ter começado” – “Televisão Privada: o Verso e o Anverso”, Diário de Lisboa, 24.1.1990. Voltar a fechar
3 Edição de 17.2.1990.
4 O semanário Liberal (edição de 29.3.1990) lembrava ter sido “Pinto Balsemão e não Sá Carneiro quem, formalmente, prometera ao Cardeal Patricarca, D. António Ribeiro, um canal de Televisão.” Ricardo Marques dos Santos, que assinava o texto, precisava: “A 23 de Janeiro de 1982, Francisco Pinto Balsemão manteve um encontro Ver maisde uma hora com D. António Ribeiro e foi feita a promessa formal de que a Igreja teria um canal de Televisão. No dia seguinte, o Diário de Notícias publica uma foto-legenda na sua terceira página. Na fotografia, Balsemão fala com jornalistas à saída da reunião com D. António Ribeiro. A legenda é elucidativa: ´Durou cerca de uma hora a audiência que o Cardeal Patriarca, D. António Ribeiro, concedeu ontem ao Primeiro-Ministro. Pinto Balsemão, à saída, revelou ter dado conhecimento ao Cardeal Patriarca do conteúdo da proposta de lei governamental que concede à Igreja Católica a exploração de um canal de TV` - estava feito o anúncio formal da intenção de Pinto Balsemão e do PSD, de darem um canal televisivo à Igreja Católica.” Voltar a fechar
5 Declarações ao Expresso, 17.3.1990.
6 As negociações, arrastadas, entre o Governo e a Televisão da Igreja tinham chegado a um impasse no momento em que as partes não abdicaram das respectivas posições. A proposta do Governo: 2 h. na RTP-2, sem emissão de publicidade; realização de um concurso limitado às confissões religiosas para aquisição Ver maisde um espaço num dos novos canais; ou integração do espaço da Igreja Católica num dos canais privados. Qualquer das três propostas foi rejeitada pela Igreja, que tinha começado por reivindicar 6 h. na RTP-2, baixando depois para um módulo de 2 a 4 h., consoante se tratasse, ou não, de “horário nobre” – mas sempre com plenitude de acesso à exploração de publicidade. O Partido Socialista, por seu turno, não se opunha a que a Igreja fosse contemplada. O que defendia era que não saísse beneficiada em relação aos restantes candidatos. Ou seja, deveria ir ao concurso público e sujeitar-se às regras comuns. Voltar a fechar
7 Diário de Lisboa, 26.3.1990.
8 A Capital, 15.6.1990.
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